sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

A Bêbada, a corda e o Equilibrista.

Esse é só um conto bobo, como todos os são.




A bêbada:




Um dos papéis mais notáveis que o alcool e outros aditivos sensoriais desempenhou- e continua desesmpenhando- na história da humanidade é a fuga da vida real. Seja para fins ritualísticos, terapêuticos ou, simplesmente, para afogar as mágoas no balcão de algum boteco infame, o alcool é capaz de nos proporcionar uma nova gravidade.


A nossa querida bêbada bebeu demais. Não se sabe do quê, não se sabe como, mas ela bebeu. E bebeu demais. Um vez embriagada ela não é capaz de ver as coisas como as vêem os sóbrios.


Também não sente como sentem os sóbrios e seu estado de espírito oscila entre uma euforia histérica e um mal estar generalizado, encontando, volta e meia, um meio termo.



A corda:



A corda, como todos sabemos, é um objeto. Um de seus principais atributos é a versatilidade... uma corda pode servir para as mais diversas atividades. Apesar disso a corda tem um problema: dependendo da sua qualidade, sua vida útil é bem pequena.

A nossa querida corda não se sabe corda, pois não tem consciência, é um objeto. Cordas não têm vontades, pensamentos, sentimentos como os humanos têm. No entanto, vejam só vocês, cordas têm alma!! O que as recheia, deixando-as tesas, se chama alma. Dito isso é fácil compreender que, assim como a bêbada não vê nem sente como os sóbrios, a corda pode não sentir nem pensar como os humanos, mas pensa e sente qualquer coisa que não compreendemos.

O equilibrista:

Existem diversas modalidades de equilibrismo e são necessários muitos anos de treino e afinco para "dominar" essa arte. Como em todas as áreas, no entanto, volta e meia aparecem seres dotados naturalmente desta interessante habilidade.

Nosso querido equilibrista é um desses dotados. Seu talento é realmente impressionante e ele é muito orgulhoso de suas habilidades, é muito feliz por ser, de fato, um equilibrista. Trata-se de uma profissão com muito risco, que requer muita coragem, mas isso nosso equilibrista tem de sobra.

A tragédia

A Bêbada, antes de ser uma completa bêbada, era malabarista. Embora servisse ao que se prestava, não era lá muito boa, sobretudo porque já gostava de uns tragos. E, sabendo que não era muito boa, passava o dia treinando, treinando e tomando um trago entre um malabares e outro.

Foi por isso que o Equilibrista, grande galã daquele Circo, reparou na Bêbada. Acabaram se apaixonando e criando um número juntos, em que a Bêbada - que morria de medo de altura - ficava cá embaixo atirando os malabares que o Equilibrista recebia lá de cima e lançava de volta cá embaixo.

A Bêbada sofria calada a grande angústia desse número. O Equilibrista era seu grande amor, mas também a grande estrela do Circo. Nunca deu um passo em falso, nunca hesitou, nunca errou.

Não bastasse isso outras malabaristas já haviam passado pelo picadeiro e pelo coração daquele Equilibrista, e as falhas que cometeram no espetáculo foram a razão de não mais estarem lá.

A Bêbada não queria falhar, mas morria de medo.

Um belo dia os dois saem atrás de uma corda nova. O Equilibrista olha, olha, pensa, pensa e por fim escolhe uma corda. Nada demais, era só uma corda, entre milhares de outras iguais, mas ele a escolhe.

A corda, por sua vez, sente-se muito bem em ser escolhida. Ela não sabia porque se sentia bem, já que nem sabia porque estava sendo escolhida, mas serviria pra qualquer coisa, já que era uma corda e as cordas são assim. Se antes ela nem sabia o que era, de onde vinha, onde estava e para onde iria, agora sua vida estava preenchida de sentido e ela aguardaria ansiosa pela informação de qual sentido era aquele. A única coisa que ela desejava no seu coração de corda era sair dalí, seja lá o que alí fosse, como havia visto as outras saindo. E esse desejo estava se realizando: aquele galente sujeito a estava tirando do vazio e qualquer coisa era melhor que o vazio. A corda sequer reparou na Bêbada, tamanho era seu encanto, orgulho e satisfação. Finalmente a escolheram!!! Finalmente poderia se gabar de não ser qualquer uma.


Voltam os três para o Circo. Amarram a corda no picadeiro, que fica muito satisfeita com a altura a que foi alçada. O Equilibrista se põe a treinar e a Bêbada se põe a beber. A princípio a corda acha muito estranho que esteja sendo pisada com tanta força. Começa a duvidar se de fato era isso que ela queria e lamenta seu destino: ficar sendo pisada e sacudida de lá para cá.

Ouvia os elogios que o Equilibrista a fazia: "Corda boa, vai servir", ficava um tantinho feliz, mas não se conformava... Sobretudo porque ouvia a Bêbada contra-argumentando: "Tem certeza, ser amado? Não é das mais confiáveis...". Ora, ora... onde já se viu? Como assim?

Mas a noite cai, o público vem e eis que a corda vê o brilho e ouve os aplausos calorosos.

Sentiu-se imediatamente parte daquilo e ficou tão, tão, mas tão satisfeita que desejou a vida eterna naquele momento!! Ela era uma estrela, ela era especial, por ela e para ela aquele espetáculo existia!!!

Pois bem.

Acontece que o Equilibrista teve uma infeliz idéia. Conhecendo os temores da Bêbada, sentiu-se apto para ajuda-la a superá-los: achava importante que a Bêbada se aventurasse sobre a corda, junto com ele. Seria uma superação e um ato de confiança.

Seria... sim, seria.

Mas a bêbada temia, temia demais. Achava de bom tamanho não derrubar os malabares, temia o tombo, temia a dor do tombo, temia pelos dentes, pelos ossos, pela cabeça que podia se rachar e temia, ai, como temia o abandono... Sabia muito bem que o Equilibrista não perdoava as falhas que ofuscassem seu talento, seu dom. Mas sabia também que a negativa não poderia durar muito tempo, vai ver fosse abandonada por outra malabarista que a isso se aventurasse, que tivesse mais coragem, mais confiança, mais certeza.

E a Bêbada disse sim, quando ele já havia desistido de lhe assediar com a idéia e já andava cabisbaixo procurando coisas no infinito.

O Equilibrista ficou tão feliz, mas tão feliz que a amou como nunca. Fez-lhe juras e promessas, disse que tudo daria certo e que ela era agora muito perfeita, muito completa. Ela não sabia que seria tão capaz de agradar com essa simples pré-disposição e ficou também muito feliz e confiante, afinal, ele havia lhe prometido: se você cair, tudo bem, você tentou.

E assim foi. Deu tudo certo, a Bêbada conseguiu, não com tanta beleza e maestria, mas conseguiu.

Sua alegria em conseguir era por conseguir, tão somente. Continuava não gostando de altura nem de cordas, mas conseguia, estava bom. Quem não gostava muito da idéia era a corda, pobrezinha... Agora ela suportava dois pesos, era pisada em dois pontos, não era essa a sua idéia, sofria demais e não estava satisfeita. O Equilibrista redobrou os cuidados para que a pobre corda não sucumbisse, mas ela estava injuriada. Queria que as coisas fossem como antes, porque não voltavam a ser?

Pois bem.

O Equilibrista teve outra infeliz idéia. Vendo os avanços da Bêbada, sentiu-se apto para fazê-la melhorar ainda mais: achava importante arrancar a alma da corda para que ela ficasse mais maleável e o número mais arriscado e emocionante. A Bêbada se desesperou. Já não gostava de cordas, quanto menos de cordas maleáveis. Mas o Equilibrista não queria saber: o show tinha que continuar!

Arrancou então, a alma da corda. Naquele instante a corda tornou-se mais dele do que de si própria, se destrambelhou e enlouqueceu de paixão. Nem como gente nem como corda a pobre se portava, porque sua alma fora roubada por aquele que a escolheu. Não gostava nada de ter que suportar aqueles dois pesos, mas era a única maneira de servir ao que lhe escolheu, então suportava, suportaria para sempre, enquanto fosse necessário. Mas porque? Porque não poderiam ser só os dois? Eles sabiam um do outro, conheciam cada milímetro um do outro, era o balé perfeito... Porque a Bêbada não podia ficar lá em baixo?

Pois bem.

Mais uma vez o Equilibrista fez muitas promessas à Bêbada, que agora vivia bêbada, enfurecida com seu destino: porque amar um homem que ama as alturas e as cordas todas, com ou sem alma? Porque não ficava lá ele, com as cordas, cada noite uma, e a deixava em paz com seu malabarismo e sua bebedeira? Porque as provas de amor só servem para provar que os amores são todos caprichosos e fulgazes? Que os grandes amores são os contrariados?

A Bêbada já não via mais nada, não sabia de mais nada, só via cordas e alturas e sentia medos vários.

Mas foi.

Foi e caiu, se quebrou em mil pedaços - pois era feita de rubi, depois se soube.
O Equilibrista, decepcionadíssimo, pediu uma salva de palmas para o excepcional tombo bêbado e, continuou sozinho, num impressionante número de corda sem alma - corda essa que, por sua vez, estava muito contente sem o peso da Bêbada. Depois de terminado o espetáculo juntou os cacos bêbados com a pá de lixo e os guardou numa caixinha de música, que visita uma vez por semana para se sentir bem consigo mesmo.

O Equilibrista e a corda, aproveitando a empatia mútua, desenvolveram vários números juntos - o mais impressionante deles envolvia um coelho e uma cartola - mas atualmente a agora hiper maleável corda faz as vezes de malabarista, quicando o malabares quando repuxada pelo seu amo.

Quanto à Bêbada... bom a Bêbada bebeu tanto que não fica mais sóbria e seus cacos de rubi planejam a fuga de dentro da caixinha de música, pois ela sabe que é lá que a corda vai parar quando arrebentar.
Fim