sexta-feira, 14 de agosto de 2009

O Quereres


(Só não sei mais, depois de tantas idas e vindas, quem é o que na ciranda)

"Onde queres revólver, sou coqueiro

E onde queres dinheiro, sou paixão

Onde queres descanso, sou desejo

E onde sou só desejo, queres não

E onde não queres nada, nada falta

E onde voas bem alto, eu sou o chão

E onde pisas o chão, minha alma salta

E ganha liberdade na amplidão
Onde queres família, sou maluco

E onde queres romântico, burguês

Onde queres Leblon, sou Pernambuco

E onde queres eunuco, garanhão

Onde queres o sim e o não, talvez

E onde vês, eu não vislumbro razão

Onde o queres o lobo, eu sou o irmão

E onde queres cowboy, eu sou chinês
Ah! Bruta flor do querer

Ah! Bruta flor, bruta flor
Onde queres o ato, eu sou o espírito

E onde queres ternura, eu sou tesão

Onde queres o livre, decassílabo

E onde buscas o anjo, sou mulher

Onde queres prazer, sou o que dói

E onde queres tortura, mansidão

Onde queres um lar, revolução

E onde queres bandido, sou herói
Eu queria querer-te amar o amor

Construir-nos dulcíssima prisão

Encontrar a mais justa adequação

Tudo métrica e rima e nunca dor

Mas a vida é real e de viés

E vê só que cilada o amor me armou

Eu te quero (e não queres) como sou

Não te quero (e não queres) como és
Ah! Bruta flor do querer

Ah! Bruta flor, bruta flor
Onde queres comício, flipper-vídeo

E onde queres romance, rock’n roll

Onde queres a lua, eu sou o sol

E onde a pura natura, o inseticídio

Onde queres mistério, eu sou a luz

E onde queres um canto, o mundo inteiro

Onde queres quaresma, fevereiro

E onde queres coqueiro, eu sou obus
O quereres e o estares sempre a fim

Do que em mim é de mim tão desigual

Faz-me querer-te bem, querer-te mal

Bem a ti, mal ao quereres assim

Infinitivamente pessoal

E eu querendo querer-te sem ter fim

E, querendo-te, aprender o total

Do querer que há e do que não há em mim"

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Let it be


Para criar meu Let it Be tive que passar do "faz um tempo eu quis/ fazer uma canção/ pra você viver mais" para "Ela disse adeus /(Now the deed is done /As you blink she is gone /Let her get on with life /Let her have some fun)"

Mas, Let it Be, sabe... em outros tempos, quando a casa de Vênus se encontrava ocupada por alguma outra coisa, eu poderia ter me empolgado um pouco mais e acrescentado "Agora você vai ouvir aquilo que merece /As coisas ficam muito boas quando a gente esquece /Mas acontece que eu não esqueci/ a sua covardia /A sua ingratidão /A judiaria que você um dia /Fez pro coitadinho do meu coração", mas não, não é o caso, de verdade...

E a gente sabe que é uma pessoa melhor e mudada quando optamos por usar esfoliante no chuveiro, ao invés de chorar. A gente sabe que "todos somos fabulosos" quando somos capazes de nos retirarmos dos lugares incômodos ao invés de implorar para que alguém jogue o lixo fora.

E não saber o que será daqui pra frente dá uma sensação boa de Doroty batendo seus sapatinhos vermelhos e ao fundo, claro: "Somewhere over the rainbow /Blue birds fly /And the dreams that you dreamed of /Dreams really do come true"...

C'est la vie!

sábado, 18 de abril de 2009


"Falados os segredos calam
E as ondas devoram léguas
Vou lhe botar num altar
Na certeza de não apressar o mundo
Não vou divulgar
Só do meu coração para o seu
Pecado é lhe deixar de molho
E isso lhe deixa louco
Não, eu não vou me zangar
Eu não vou lhe xingar
Lhe mandar embora
Eu vou me curvar
Ao tamanho desse amor
Só o amor sabe os seus
Não, eu não vou me vingar
Se você fez questão
De vagar o mundo
Não vou descuidar
Vou lembrar como é bom
E ao amor me render"

domingo, 5 de abril de 2009


"A estrada do excesso leva ao palácio da sabedoria.

(...)

O excesso de tristeza ri;

o excesso de alegria chora.

(...)

O orgulho do pavão é a glória de Deus.

(...)

Assim como a lagarta escolhe as mais belas folhas para deitar seus ovos,

assim o sacerdote lança sua maldição sobre as alegrias mais belas.

(..)

É suficiente! ou Basta."


William Blakein

em

"O casamento do céu e do inferno"

.............


segunda-feira, 23 de março de 2009


Sempre que me perguntam sobre a experiência da submissão fico com aquela cara de boba tentando encontrar um meio de responder à quem não entende - e vai continuar sem entender.

É muito difícil explicar sem cair nas armadilhas dos papéis, das cartilhas, dos manuais práticos que fogem à toda e qualquer verdade que a submissão encerra...


Quando eu comecei a habitar esse mundinho bonito e secreto eu estava perdida e confusa como todos que começam todas as coisas e sou grata à sorte que tive.
A importância do que foi meu Dono é indiscutível e dispensa maiores comentários... Hoje eu quero falar das minhas amigas submissas, que graças ao estímulo e espaço que O que foi meu Dono me deu, eu tive a sorte de conhecer...
Essas moças se tornaram, cada uma a seu modo, exemplos e referências para mim como submissa, e companheiras e conselheiras em todos os campos da minha vida.
Eu digo isso com sentimentalismo meio piegas não só porque sou uma canceriana dramática, mas também porque anda cada vez mais difícil ter a sorte de encontrar submissas de fato inteiradas do significado da submissão que está além das cartilhas.
Eu tive muita sorte.
Fui bem recebida, bem aconselhada, bem orientada no meu começo e ganhei, de quebra, companheiras infalíveis pra todas as horas.
Vide {rianah} de Lestat... Companheiríssima de todas as horas! E quando eu digo todas quero dizer que {rianah} esteve presente desde a escolha do meu animalzinho de estimação até no meu sufoco em traduzir os textos pros meus trabalhos na faculdade... Dos meus porres virtuais nas madrugadas eternas, tentando, as duas, feitos loucas, ouvir a mesma música ao mesmo tempo na rádio uol, até minhas tardes chatas de trabalho, trocando figurinhas sobre as coisas todas... {rianah} está sempre, na alegria e na tristesa, no sufoco e na folia!!! E como se não bastasse é farol... tem culpa (rs) na construção da minha própria sibmissão... e como diríamos em algums momentos: não basta ter coleira, né, {ri}, tem que participar! rs
E ainda tem {anitta}, a {angel}_Policial Sádico, a {vita}_Senhor da Torre, a {Levanah}_Master Lander que me são muito caras, queridas, amadas. Cada uma ao seu modo, com seu humor e com sua vivência me deram apoio, companhia, conselho, alegria, amizade mesmo. Não tenho dúvida que tudo seria diferente e menos leve sem essas preciosas.
Amizade é para muitas coisas e cada um tem sua teoria sobre isso. À essas amigas eu sou grata por muitas coisas, entre elas pelas trocas de idéias, pelo amparo tácito.
Somos seres sociais, querendo ou não, gostando ou não. No BDSM as amizades me são caras para coisas além do BDSM em si e acho muito bom que assim seja. Tristes dos que se fecham, dos que vêem o meio como um bloco rígido e não como um mosaico de personalidades. Eu encontrei pessoas maravlihosas naqueles avatares e não me privaria disso por nada.
E assim eu declaro meu amor de irmã às minhas amigas submissas. Não dividimos nossas coleiras, nossos Donos nem nossas sessões: dividimos nossas vidas, nossas companhias, nossas janelinhas no msn!!! E sou muito feliz com isso!
E quando indagada novamente sobre submissão talvez encaminhe os curiosos à vocês, moças... Estão muito mais aptas às respostas!

Há quem procure o amor nas pessoas, na família, no dinheiro, no feijão com arroz, na marmita presa pelos braços no metrô lotado ás 5 da manhã...


Há quem procure o amor no passado, nos verões, nas micaretas, debaixo da cama, num velho cartão postal perdido entre as páginas amarelas de um livro de sebo...


Há quem procure o amor nas respostas, nas palavras, na experiência, no cigarro compartilhado, no espelho do bar...


Há quem procure o amor no amor dos outros, nos livros de Garcia Marquez, nas canções do Chico, nas mulheres de Picasso, nos sonhos esquecidos, nos contos de fadas.


Eu procuro o amor onde é mais difícil encontrar o amor: na Verdade. E me pergunto à cada caça: será o amor quem esconde a verdade ou a verdade é quem esconde o amor? Ou serão ambos faces da mesma moeda inválida e cafona, com a qual só conseguimos comprar o que não queremos nem pedimos?


Nessas horas, ao contrário do que possa parecer, eu me convenço de que nos cabe somente aceitar qualquer coisa e dançar um tango argentino no túmulo dos sonhos todos... Pois aconteça o que acontecer o epitáfio sempre será: nenhum amor de verdade nos contempla.


Um brinde aos meus rasos companheiros de planeta que se dão por satisfeitos com as juras de amor que lhes são proferidas... Eu os injevo com toda a capacidade de admiração desse meu coração rabugento... E em homenagem aos pobres diabos que, como eu, são escravos da verdade que tanto destrói, ele, o mais pobre de todos os diabos e sua ode à Verdade do amor: Vinicius de Moraes.


Canto de Ossanha


-"O canto da mais difícil
E mais misteriosa das deusas
Do candomblé baiano
Aquela que sabe tudo
Sobre as ervasSobre a alquimia do amor"


Deaaá! Deeerê!
Deaaá!
O homem que diz "dou"
Não dá!
Porque quem dá mesmo
Não diz!
O homem que diz "vou"
Não vai!
Porque quando foi
Já não quis!

O homem que diz "sou"
Não é!
Porque quem é mesmo "é"
Não sou!
O homem que diz "tou"
Não tá
Porque ninguém tá
Quando quer

Coitado do homem que cai
No canto de Ossanha
Traidor!
Coitado do homem que vai
Atrás de mandinga de amor...

Vai! Vai! Vai! Vai!
Não Vou!
Vai! Vai! Vai! Vai!
Não Vou!
Vai! Vai! Vai!
Vai!Não Vou!
Vai! Vai! Vai! Vai!
Não Vou!...

Que eu não sou ninguém de ir
Em conversa de esquecer
A tristeza de um amor
Que passouNão!
Eu só vou se for prá ver
Uma estrela aparecer
Na manhã de um novo amor...

Amigo sinhôSaravá
Xangô me mandou lhe dizer
Se é canto de Ossanha
Não vá!
Que muito vai se arrepender
Pergunte pr'o seu Orixá
O amor só é bom se doer
Pergunte pr'o seu Orixá
O amor só é bom se doer...

Vai! Vai! Vai! Vai!
Amar!
Vai! Vai! Vai! Vai!
Sofrer!
Vai! Vai! Vai! Vai!
Chorar!
Vai! Vai! Vai! Vai!
Dizer!...

Que eu não sou ninguém de ir
Em conversa de esquecer
A tristeza de um amor
Que passou
Não!
Eu só vou se for prá ver
Uma estrela aparecer
Na manhã de um novo amor...

Vai! Vai! Vai! Vai!
Amar!
Vai! Vai! Vai! Vai!
Sofrer!
Vai! Vai! Vai! Vai!
Chorar!
Vai! Vai! Vai! Vai!
Dizer!...


terça-feira, 3 de fevereiro de 2009


Existem diversas mortes e não apenas seres e plantas morrem. Os budistas comparam a vida à um rio que você não pode simplesmente comtemplar: a vida é um rio dentro do quel você está e alguns usam o verbo "viver" unido ao "morrer" - viver/morrendo, pra ilustrar essas mortes cotidianas que temos todos.


Bom. Quando uma relação, um amor, uma amizade ou um ódio morrem, morrem com ele qualquer coisa de quem o sentia - para o próprio e para o Outro. Mas não tudo. Quando deixamos de ser amados, de certa forma morremos para quem antes nos amava. Isso pode se dar de forma negativa - quando morre nossa presença, nossa importância e nosso calor-, ou de forma positiva, quando simplesmente deixamos de existir da forma como existíamos e pssamos a viver e participar em outros planos.


O Mundo dos Mortos não é tão triste assim...


Quando Mumtaz Mahal faleceu dando à luz ao seu 14° filho, seu marido, o imperador Shah Jahan construiu em sua homenagem o Taj Mahal. É um mausoléu para o amor da sua vida, mas também uma prova suprema desse amor.

Com o Taj Mahal Mumtaz Mahal foi eternizada... A princesa não morre na sua morte física e tampouco morre o amor de Shah Jahan com a impossibilidade de tocar, beijar e abraçar sua esposa. Eles se transformam... os amores e os seres amados.


O Taj Mahal representa pra mim - porque assim o quero ver - o simbolo supremo de que os amores continuam existindo depois das tranformações. O Grande Homem constrói para sua princesa morta e transformada um palácio, o mais lindo de todos, para guardá-la, protege-la, honra-la. E a princesa morta e transformada, por sua vez, não assombra o Grande Homem com a vida passada - ela embeleza a vida que segue para Ele.


Evidentemente a dor dos amores mortos nos remete, num primeiro momento, à morte de todos os sonhos dos amantes. É preciso, nessa hora, ser grata ao mundo pelos sonhos já vividos e entender, por mais que doa, que o melhor que podemos fazer é contruir nossos palácios em honra à esses amores. Palácios lindos, que protegem e eternizam. Palácios que honram. Palácios que tentem alcançar a beleza do que foi vivido, para que o mundo saiba que as transformações, as mortes e as perdas deixam algo de bom: a lembrança.


O Taj Mahal está lá, acima de tudo, para os descrentes... para que vejam todos, toquem todos, uma centelha de amor em forma de mármore.


E eu, que também acebei "morrendo" de tanto amor, aproveito para agradecer pelo palácio em que descanso: cá, no outro plano em que caminho, onde já não posso mais tocar, beija e abraçar, sinto que nada foi em vão e que a beleza das coisas ecoa para sempre, basta que sejam verdade.


Na minha transformação eu descanso sob a mão que me protege, me apoia, me socorre no desespero e afasta o que pode me causar mal... sem contar que a vista pe linda, rs.


Obrigada, Grande Amor... obrigada por tudo.

Salomé.




Na peça de Oscar Wilde Salomé é amada por Herodes - marido de sua mãe - e pelo Jovem Sírio, mas cai de amores por São João Batista: o estranho e louco profeta que o marido de sua mãe mantém preso no poço do palácio.




Não conheço bem a versão bíblica de Salomé, mas na peça ela passa longe de uma prostituta ou de uma libertina: é uma menina, mimada e infantil, que tem seu amor de paixão renegado e enlouquece.

Acho lindíssimo... Alguns pontos, principalmente.

Salomé não faz uso de sensualidade. Ela não se vale do amor dos outros dois homens por ela até se apaixonar por João. Herodes ela evita e o Jovem Sírio ela ignora. Mas quando se apaixona ela rapidamente entende que o amor é capaz de tudo e, primeiro, convence o Jovem Sírio a abrir o poço onde Joaõ se encontra, promentendo lhe lançaar um sorriso e um olhar no dia seguinte.

O Jovem Sírio abre o poço e em seguida se mata, quando constata que Salomé ama João. Salomé nem percebe.

Depois Salomé cede aos assédios de Herodes, que diz lhe dar qualquer coisa, até a metade do seu reino, se Salomé dançasse para ele. Ela o faz jurar cem vezes, na frente de todos, que lhe dará qualquer coisa, qualquer uma. herodes jura, Salomé dança (a dança dos sete véus, rs) e pede a cabeça de João.




Salomé não é exatamente, nesse ponto, uma bruxa vingativa e malvadinha. Ela não pede a cabeça de João por vingança, por recalque do seu amor renegado. Também por isso, talvez, mas não foi a maior motivação... Salomé queria beijá-lo. Salomé não poderia continuar vivendo sem beijá-lo. Mais do que tudo ela queria aquele beijo e, como João lhe negava, aquela era a única maneira de consumar seu amor.

O interessante é que João não olha em nenhum momento para Salomé. Ele só a ouve e a repudia, ordena que se afaste, se altera, se irrita, mas não a olha, se nega a isso... Talvez porque soubesse que a desejaria. Salomé foi a grande tentação de João, eu creio... E ele resistiu.

Eis uma das falas finais de Salomé, já com a cabeça de João na bacia de prata:

"(...)Que farei agora, Iokanan? Nem os rios, nem as grandes águas poderiam apagar a minha paixão. Era princesa, tu me desdenhaste. Era virgem, tu me defloraste. Era casta, tu me encheste as veias de fogo... Ah! Ah! Porque não me olhaste, Iokanan? Se me houvesses olhado, hever-me-ia amado. Sei muito bem que me haverias amado, e o mistério do amor é maior que o mistério da morte. Só para o amor se deve olhar"

Remete ao desespero dos que já se transformaram tanto que não podem ser mais nada, não tem volta...

E depois Salomé beija a cabeça de São João Batista.

"Ah! Beijei tua boca, Iokanan, beijei a tua boca! Havia um gosto acre nos teus lábios. Seria o gosto do sangue?... Mas talvez seja o gosto do amor. Dizem que o amor tem um gosto acre... (...)"

Herodes ordena a morte de Salomé.

Bom... trágico, eu acho. Todos os grandes e loucos amores o são. Reparem que a História e a literatura são fartas de exemplos que comprovam que os grandes amores são os não consumados, o que caem secos no chão, cedo ou tarde.

Sem o julgamento moral de Salomé e sem levar tudo ao pé da letra - afinal de contas é inconstitucional arrancar cabeças por aí - percebemos que ela é bonita no seu desespero. Percebemos que seu amor, que no início parece um capricho tolo, a amadureceu em algumas horas, a tornou mulher e a levou a extremos muito loucos.

Salomé não se iludiu em nenhum momento. Morreu sabendo-se não amada e seu único convencimento era vão diante dos fatos: que João a teria amado se a tivesse visto. Mas não viu e Salomé sabia muito bem que estava sacrificando tudo, inclusive a si própria, por um amor unilateral. Por um beijo. Só um... numa boca morta que nunca a desejou.

Acho que poucos loucos de amor foram tão tristes quanto Salomé.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

A Bêbada, a corda e o Equilibrista.

Esse é só um conto bobo, como todos os são.




A bêbada:




Um dos papéis mais notáveis que o alcool e outros aditivos sensoriais desempenhou- e continua desesmpenhando- na história da humanidade é a fuga da vida real. Seja para fins ritualísticos, terapêuticos ou, simplesmente, para afogar as mágoas no balcão de algum boteco infame, o alcool é capaz de nos proporcionar uma nova gravidade.


A nossa querida bêbada bebeu demais. Não se sabe do quê, não se sabe como, mas ela bebeu. E bebeu demais. Um vez embriagada ela não é capaz de ver as coisas como as vêem os sóbrios.


Também não sente como sentem os sóbrios e seu estado de espírito oscila entre uma euforia histérica e um mal estar generalizado, encontando, volta e meia, um meio termo.



A corda:



A corda, como todos sabemos, é um objeto. Um de seus principais atributos é a versatilidade... uma corda pode servir para as mais diversas atividades. Apesar disso a corda tem um problema: dependendo da sua qualidade, sua vida útil é bem pequena.

A nossa querida corda não se sabe corda, pois não tem consciência, é um objeto. Cordas não têm vontades, pensamentos, sentimentos como os humanos têm. No entanto, vejam só vocês, cordas têm alma!! O que as recheia, deixando-as tesas, se chama alma. Dito isso é fácil compreender que, assim como a bêbada não vê nem sente como os sóbrios, a corda pode não sentir nem pensar como os humanos, mas pensa e sente qualquer coisa que não compreendemos.

O equilibrista:

Existem diversas modalidades de equilibrismo e são necessários muitos anos de treino e afinco para "dominar" essa arte. Como em todas as áreas, no entanto, volta e meia aparecem seres dotados naturalmente desta interessante habilidade.

Nosso querido equilibrista é um desses dotados. Seu talento é realmente impressionante e ele é muito orgulhoso de suas habilidades, é muito feliz por ser, de fato, um equilibrista. Trata-se de uma profissão com muito risco, que requer muita coragem, mas isso nosso equilibrista tem de sobra.

A tragédia

A Bêbada, antes de ser uma completa bêbada, era malabarista. Embora servisse ao que se prestava, não era lá muito boa, sobretudo porque já gostava de uns tragos. E, sabendo que não era muito boa, passava o dia treinando, treinando e tomando um trago entre um malabares e outro.

Foi por isso que o Equilibrista, grande galã daquele Circo, reparou na Bêbada. Acabaram se apaixonando e criando um número juntos, em que a Bêbada - que morria de medo de altura - ficava cá embaixo atirando os malabares que o Equilibrista recebia lá de cima e lançava de volta cá embaixo.

A Bêbada sofria calada a grande angústia desse número. O Equilibrista era seu grande amor, mas também a grande estrela do Circo. Nunca deu um passo em falso, nunca hesitou, nunca errou.

Não bastasse isso outras malabaristas já haviam passado pelo picadeiro e pelo coração daquele Equilibrista, e as falhas que cometeram no espetáculo foram a razão de não mais estarem lá.

A Bêbada não queria falhar, mas morria de medo.

Um belo dia os dois saem atrás de uma corda nova. O Equilibrista olha, olha, pensa, pensa e por fim escolhe uma corda. Nada demais, era só uma corda, entre milhares de outras iguais, mas ele a escolhe.

A corda, por sua vez, sente-se muito bem em ser escolhida. Ela não sabia porque se sentia bem, já que nem sabia porque estava sendo escolhida, mas serviria pra qualquer coisa, já que era uma corda e as cordas são assim. Se antes ela nem sabia o que era, de onde vinha, onde estava e para onde iria, agora sua vida estava preenchida de sentido e ela aguardaria ansiosa pela informação de qual sentido era aquele. A única coisa que ela desejava no seu coração de corda era sair dalí, seja lá o que alí fosse, como havia visto as outras saindo. E esse desejo estava se realizando: aquele galente sujeito a estava tirando do vazio e qualquer coisa era melhor que o vazio. A corda sequer reparou na Bêbada, tamanho era seu encanto, orgulho e satisfação. Finalmente a escolheram!!! Finalmente poderia se gabar de não ser qualquer uma.


Voltam os três para o Circo. Amarram a corda no picadeiro, que fica muito satisfeita com a altura a que foi alçada. O Equilibrista se põe a treinar e a Bêbada se põe a beber. A princípio a corda acha muito estranho que esteja sendo pisada com tanta força. Começa a duvidar se de fato era isso que ela queria e lamenta seu destino: ficar sendo pisada e sacudida de lá para cá.

Ouvia os elogios que o Equilibrista a fazia: "Corda boa, vai servir", ficava um tantinho feliz, mas não se conformava... Sobretudo porque ouvia a Bêbada contra-argumentando: "Tem certeza, ser amado? Não é das mais confiáveis...". Ora, ora... onde já se viu? Como assim?

Mas a noite cai, o público vem e eis que a corda vê o brilho e ouve os aplausos calorosos.

Sentiu-se imediatamente parte daquilo e ficou tão, tão, mas tão satisfeita que desejou a vida eterna naquele momento!! Ela era uma estrela, ela era especial, por ela e para ela aquele espetáculo existia!!!

Pois bem.

Acontece que o Equilibrista teve uma infeliz idéia. Conhecendo os temores da Bêbada, sentiu-se apto para ajuda-la a superá-los: achava importante que a Bêbada se aventurasse sobre a corda, junto com ele. Seria uma superação e um ato de confiança.

Seria... sim, seria.

Mas a bêbada temia, temia demais. Achava de bom tamanho não derrubar os malabares, temia o tombo, temia a dor do tombo, temia pelos dentes, pelos ossos, pela cabeça que podia se rachar e temia, ai, como temia o abandono... Sabia muito bem que o Equilibrista não perdoava as falhas que ofuscassem seu talento, seu dom. Mas sabia também que a negativa não poderia durar muito tempo, vai ver fosse abandonada por outra malabarista que a isso se aventurasse, que tivesse mais coragem, mais confiança, mais certeza.

E a Bêbada disse sim, quando ele já havia desistido de lhe assediar com a idéia e já andava cabisbaixo procurando coisas no infinito.

O Equilibrista ficou tão feliz, mas tão feliz que a amou como nunca. Fez-lhe juras e promessas, disse que tudo daria certo e que ela era agora muito perfeita, muito completa. Ela não sabia que seria tão capaz de agradar com essa simples pré-disposição e ficou também muito feliz e confiante, afinal, ele havia lhe prometido: se você cair, tudo bem, você tentou.

E assim foi. Deu tudo certo, a Bêbada conseguiu, não com tanta beleza e maestria, mas conseguiu.

Sua alegria em conseguir era por conseguir, tão somente. Continuava não gostando de altura nem de cordas, mas conseguia, estava bom. Quem não gostava muito da idéia era a corda, pobrezinha... Agora ela suportava dois pesos, era pisada em dois pontos, não era essa a sua idéia, sofria demais e não estava satisfeita. O Equilibrista redobrou os cuidados para que a pobre corda não sucumbisse, mas ela estava injuriada. Queria que as coisas fossem como antes, porque não voltavam a ser?

Pois bem.

O Equilibrista teve outra infeliz idéia. Vendo os avanços da Bêbada, sentiu-se apto para fazê-la melhorar ainda mais: achava importante arrancar a alma da corda para que ela ficasse mais maleável e o número mais arriscado e emocionante. A Bêbada se desesperou. Já não gostava de cordas, quanto menos de cordas maleáveis. Mas o Equilibrista não queria saber: o show tinha que continuar!

Arrancou então, a alma da corda. Naquele instante a corda tornou-se mais dele do que de si própria, se destrambelhou e enlouqueceu de paixão. Nem como gente nem como corda a pobre se portava, porque sua alma fora roubada por aquele que a escolheu. Não gostava nada de ter que suportar aqueles dois pesos, mas era a única maneira de servir ao que lhe escolheu, então suportava, suportaria para sempre, enquanto fosse necessário. Mas porque? Porque não poderiam ser só os dois? Eles sabiam um do outro, conheciam cada milímetro um do outro, era o balé perfeito... Porque a Bêbada não podia ficar lá em baixo?

Pois bem.

Mais uma vez o Equilibrista fez muitas promessas à Bêbada, que agora vivia bêbada, enfurecida com seu destino: porque amar um homem que ama as alturas e as cordas todas, com ou sem alma? Porque não ficava lá ele, com as cordas, cada noite uma, e a deixava em paz com seu malabarismo e sua bebedeira? Porque as provas de amor só servem para provar que os amores são todos caprichosos e fulgazes? Que os grandes amores são os contrariados?

A Bêbada já não via mais nada, não sabia de mais nada, só via cordas e alturas e sentia medos vários.

Mas foi.

Foi e caiu, se quebrou em mil pedaços - pois era feita de rubi, depois se soube.
O Equilibrista, decepcionadíssimo, pediu uma salva de palmas para o excepcional tombo bêbado e, continuou sozinho, num impressionante número de corda sem alma - corda essa que, por sua vez, estava muito contente sem o peso da Bêbada. Depois de terminado o espetáculo juntou os cacos bêbados com a pá de lixo e os guardou numa caixinha de música, que visita uma vez por semana para se sentir bem consigo mesmo.

O Equilibrista e a corda, aproveitando a empatia mútua, desenvolveram vários números juntos - o mais impressionante deles envolvia um coelho e uma cartola - mas atualmente a agora hiper maleável corda faz as vezes de malabarista, quicando o malabares quando repuxada pelo seu amo.

Quanto à Bêbada... bom a Bêbada bebeu tanto que não fica mais sóbria e seus cacos de rubi planejam a fuga de dentro da caixinha de música, pois ela sabe que é lá que a corda vai parar quando arrebentar.
Fim